A “TOLERÂNCIA” DE JOÃO CALVINO
Sabemos
que essa forma de intolerância vem desde cedo, mas exatamente de quando seria?
Temos fortes indícios de que tudo remete a seu principal pregador, o próprio
João Calvino. Embora ele fosse um gênio, e, na minha opinião, um dos maiores
intelectuais que este mundo já viu, e muito acima da média dos intelectuais de
sua época, ele tinha um forte problema em tolerar uma posição contrária. Isso
fica evidente a começar pela leitura das próprias Institutas, a principal obra
de Calvino, dividida em quatro grandes volumes.
Ele
se refere aos seus oponentes, que não criam em sua doutrina, por vários
diferentes nomes pejorativos, como “dementes”[1], “porcos”[2], “mentes
pervertidas”[3], “cães virulentos que vomitam contra Deus”[4], “inimigos da
graça de Deus”[5], “inimigos da predestinação”[6], “estúpidos”[7], “espíritos
desvairados”[8], “bestas loucas”[9], “caluniadores desprezíveis”[10],
“gentalha”[11], “espíritos ignorantes”[12], “embusteiros”[13], “bestas”[14],
“cães, porcos e perversos”[15], “insanos”[16] e “criaturas bestiais”[17].
As
ofensas também abundavam em termos pessoais. A Pighius ele chama de “cão
morto”[18], a Serveto ele chama de “monstro pernicioso”[19] e aos anabatistas
ele chama de “bestas loucas”[20] por negarem o batismo infantil, que hoje é
rejeitado por quase todas as denominações protestantes. Sobre o batismo
infantil, ele diz que “Deus irá descarregar sua vingança sobre qualquer um que
desprezar assinalar seu filho com o símbolo da aliança”[21]. Como Roland
Bainton bem observa, “se Calvino alguma vez escreveu algo em favor da liberdade
religiosa, foi um erro tipográfico”[22].
Em
Genebra, sob a influência de Calvino, uma série de regras foram impostas,
dentre as quais:
“Além
das leis usuais contra a dança, a profanação, os jogos de apostas, e a falta de
vergonha, o número de pratos comidos em uma refeição era regulado[23].
Freqüência aos cultos públicos tornou-se obrigatório e ordenou-se que vigias
verificassem quem freqüentava a igreja[24]. A censura à imprensa foi instituída
e livros julgados heréticos ou imorais foram proibidos[25]. Juros nos
empréstimos foram limitados a 5 por cento[26]. Os nomes que davam às crianças
eram regulados[27]. Dar nome a uma criança de um santo católico era uma ofensa
penal[28]. Durante um aumento repentino da praga em 1545, cerca de vinte
pessoas foram queimadas vivas por bruxaria, e o próprio Calvino esteve
envolvido nas perseguições[29]. De 1542 a 1546, cinqüenta e oito pessoas foram
executadas e sessenta e seis exiladas de Genebra. A tortura era livremente
usada para extrair confissões[30]. O calvinista John McNeil admite que ‘nos
últimos anos de Calvino, e sob sua influência, as leis de Genebra se tornaram
mais detalhadas e severas’”[31]
Laurence
Vance ainda ressalta o caso de Jacques Gruet, oponente de Calvino:
“Jacques
Gruet, um conhecido oponente de Calvino, foi preso (…) Após um mês de tortura,
Gruet confessou e foi sentenciado à morte: ‘Você, de forma ultrajante, ofendeu
e blasfemou contra Deus e sua sagrada Palavra; você conspirou contra o governo;
você ameaçou servos de Deus e, culpado de traição, merece a pena capital’[32].
Ele foi decapitado em 26 de julho de 1547, com o consentimento de Calvino na
sua morte[33]. Vários anos mais tarde um livro herético de Gruet foi descoberto
e foi queimado em público em frente a casa de Gruet, conforme sugerido por
Calvino[34]”[35]
Stefan
Zweig afirma que “é por isso que Calvino freqüentemente tem sido rotulado como
o ‘o ditador de Genebra’ que ‘toleraria em Genebra as opiniões de somente uma
pessoa, as suas’”[36]. Mas o caso mais famoso é o de Miguel Serveto, que merece
uma maior atenção de nossa parte.
Calvino
e Serveto
Serveto
era um dos principais oponentes de Calvino, pois descria na trindade, na
predestinação e no batismo infantil. Os dois trocaram algumas cartas e, vendo
que Serveto mantinha a opinião, Calvino passou a ignorá-lo e deixou de
respondê-lo. Em suas Institutas ele menciona Serveto em várias ocasiões
diferentes, sempre com adjetivos pejorativos, chamando-o de “monstro”[37] e
coisas piores.
Em
13 de agosto de 1553, Serveto viajou a Genebra e ouvia um sermão de Calvino,
quando foi reconhecido e preso. Calvino, então, insistiu na sua condenação à
morte usando todos os meios possíveis. Ele escreveu a Farel mostrando o seu
desejo de que Serveto fosse executado:
“Serveto
recentemente me escreveu, e anexou em sua carta um longo volume dos seus
delírios, cheio de ostentação, para que eu devesse ver algo espantoso e
desconhecido. Ele faz isto para se aproximar, caso seja de meu acordo. Mas eu
estou indisposto a dar minha palavra em favor de sua segurança, pois se ele
vier, eu nunca o deixarei escapar vivo se a minha autoridade tiver peso”[38]
O
próprio Calvino confirma que foi ele mesmo que ordenou que Serveto fosse
detido:
“Temos
agora um novo caso sob consideração com Serveto. Ele pretendeu talvez passar
por esta cidade; pois ainda não é sabido a intenção dele ter vindo. Mas depois
que ele foi reconhecido, eu pensei que ele deveria ser detido”[39]
“Finalmente,
em uma má hora, ele veio a este lugar, quando, por mim instigado, um dos
procuradores ordenou-o a ser conduzido para a prisão; pois eu não escondo que
eu considerei meu dever dar um basta, tanto quanto podia, neste mais obstinado
e indisciplinado homem, para que sua influência não possa mais espalhar”[40]
Em
suas cartas a Farel, ele constantemente insistia que o veredicto deveria ser a
pena de morte:
“Eu
espero que ele obtenha, pelo menos, a sentença de morte”[41]
Depois
que Serveto foi condenado à morte na fogueira, ele reconheceu que teve parte na
sua execução:
“Honra,
glória, e riquezas será a recompensa de suas dores: mas acima de tudo, não
deixe de livrar o país daqueles zelosos patifes que incitam o povo para se
revoltar contra nós. Tais monstros devem ser exterminados, como exterminei
Michael Serveto, o espanhol”[42]
E
ele ainda insistia:
“Quem
quer que agora argumentar que é injusto colocar heréticos e blasfemadores à
morte, consciente e condescentemente incorrerá em sua mesma culpa”[43]
Em
momento nenhum ele se mostrou arrependido por ter mandado executar Serveto. Ao
contrário, ele insistia que deveríamos esquecer toda humanidade quando o
assunto é o “combate pela glória de Deus”, que ele entendia ser a execução dos
“hereges e blasfemadores”:
“Quem
sustenta que é errado punir hereges e blasfemadores, pois nos tornamos
cúmplices de seus crimes (…). Não se trata aqui da autoridade do homem, é Deus
que fala (…). Portanto se Ele exigir de nós algo de tão extrema gravidade, para
que mostremos que lhe pagamos a honra devida, estabelecendo o seu serviço acima
de toda consideração humana, que não poupamos parentes, nem de qualquer sangue,
e esquecemos toda a humanidade, quando o assunto é o combate pela Sua
glória”[44]
À
vista de tudo isso, o calvinista William Cunningham admite:
“Não
há dúvida que Calvino antecipadamente, na hora, e depois do acontecimento,
explicitamente aprovou e defendeu a execução dele, e assumiu a responsabilidade
do procedimento”[45]
O
historiador Philip Schaff acrescenta que “o julgamento de Serveto durou mais de
dois meses e o próprio Calvino redigiu um documento de trinta e oito acusações
contra Serveto”[46]. Embora alguns calvinistas fanáticos tentem salvar Calvino
da acusação de assassinato, os fatos documentais apontam explicitamente o
contrário, e tentar jogar a culpa de Serveto somente para os outros é no mínimo
vexatório e indigno.
O
próprio Calvino, antes, durante e depois do julgamento de Serveto expressou
diversas vezes seu desejo de que ele fosse executado e não há sequer um único
registro documental de que ele tenha alguma vez se arrependido deste ato.
Embora os calvinistas tentem defender Calvino afirmando que naquela época era
comum a pena de morte por heresia, sabemos que o pecado continua sendo pecado
do mesmo jeito, independentemente da sociedade ou cultura onde se vive. O
pecado em Sodoma e Gomorra tinha o mesmo peso de um pecado em Jerusalém, mesmo
que todos os habitantes se Sodoma e Gomorra fossem completamente depravados e
não tivessem muito senso de moral.
Além
disso, se a Bíblia ensina que devemos guardar a espada, porque todos aqueles
que fazem uso da espada pela espada morrerão (Mt.26:52), então a pena de morte
por razões religiosas não é apenas imoral, mas também antibíblica. Por fim, é
necessário ressaltar que nem todos na época de Calvino eram intolerantes como
Calvino era. O próprio Armínio, que viveu apenas uma geração depois de Calvino,
era alguém reconhecido por sua calma, tolerância e paciência com todos.
Vance
afirma que “Armínio foi conhecido por sua tolerância, e não há nenhum registro
de qualquer perseguição praticada contra ‘heréticos’”[47]. Limborch disse que
“Armínio foi um piedoso e devoto homem, prudente, cândido, brando e sereno, o
mais zeloso a preservar a paz da Igreja”[48]. Isso é reconhecido até mesmo por
autores calvinistas. Homer Hoeksema declara que Armínio era “um homem de amável
personalidade, refinado em conduta e aparência”[49].
Arthur
Custance diz que ele era “um homem dos mais honrados e indubitavelmente um
crente muito fervoroso”[50]. Samuel Miller acrescenta que “Armínio, quanto a
talentos, erudição, eloqüência, e exemplaridade geral de comportamento moral, é
indubitavelmente digno de elevada exaltação”[51]. Hugo Grotius observa que
Armínio, “condenado pelos outros, não condenou ninguém”[52]. Mas, quanto à
Calvino, o historiador batista William Jones diz:
“E
com respeito a Calvino, é manifesto, que a principal, a mim pelo menos,
característica mais odiosa em toda a multiforme figura do papismo uniu-se a ele
por toda a vida – eu quero dizer o espírito de perseguição”[53]
O
que isso influencia na discussão entre calvinismo e arminianismo? Embora a
doutrina em si seja algo que iremos abordar a partir do capítulo seguinte, isso
nos dá uma boa noção do por que Calvino não via problemas em sua noção de Deus,
principalmente à luz de seu determinismo exaustivo (onde Deus determina até
mesmo o pecado) e da dupla predestinação (onde Deus determina antes da fundação
do mundo que seres que ainda nem nasceram fossem lançados irremediavelmente a
um inferno de tormento eterno para todo o sempre).
Oskar
Pfister fala sobre isso nas seguintes palavras:
“O
fato do próprio caráter de Calvino ter sido compulsivo-neurótico foi o que
transformou o Deus de amor como experimentado e ensinado por Jesus, num caráter
compulsivo, sustentando características absolutamente diabólicas em sua prática
reprovativa”[54].
Isso
explica o porquê que em momento nenhum vemos Calvino tentando salvar a
reputação moral de Deus nas Institutas. Ele tenta por vezes resgatar algo da
responsabilidade humana, mas nunca escreveu sequer uma única linha para tentar
salvar Deus da acusação de ser o autor do pecado e aquele que determina todas
as maldades e atrocidades do mundo. Como veremos no capítulo seguinte, ele
afirma expressamente essas coisas, e não tinha um mínimo senso de dever em
oferecer explicações.
O
Deus pregado por Calvino não precisava ter muito senso moral, como o próprio
Calvino não se preocupava muito com isso em sua teologia. Intolerância, crimes
e perseguição eram coisas que não eram levadas a sério como são levadas hoje,
e, consequentemente, Calvino não viu problema nenhum em pintar um Deus à sua
própria imagem e semelhança, sem qualquer hesitação por princípios morais que
os arminianos creem serem imprescindíveis e essenciais na divindade.
Foi
por isso que Armínio e os arminianos rejeitaram tão fortemente o determinismo
exaustivo e a dupla predestinação incondicional calvinista, pois não viam como
que essas doutrinas poderiam não afetar o testemunho bíblico de um Deus cheio
de amor, justiça, graça e misericórdia, que deseja que todos os homens se
salvem e que cheguem ao conhecimento da verdade (1Tm.2:4), que não deseja a
morte de nenhum ímpio (Ez.18:23), que amou o mundo de tal maneira que deu Seu
Filho unigênito para morrer por pecadores (Jo.3:16) e que é totalmente puro e
não se envolve em nenhuma medida com o pecado (Hb.1:13).
[1]
Institutas, 1.16.4.
[2]
Institutas, 3.23.12.
[3]
Institutas, 3.25.8.
[4]
Institutas, 3.23.2.
[5]
Institutas, 2.5.11.
[6]
Sermão sobre a Eleição, p. 6. Disponível em:
<http://www.projetospurgeon.com.br/wp-content/uploads/2012/07/ebook_eleicao_calvino.pdf>
[7]
Institutas, 3.11.15.
[8]
Institutas, pp. 1324.
[9]
Institutas, 4.16.10.
[10]
Secret Providence, p. 209.
[11]
Institutas, 3.3.2.
[12]
Institutas, 2.7.13.
[13]
Institutas, 2.16.12.
[14]
Institutas, 4.7.9.
[15]
Sermão sobre a Eleição, p. 4. Disponível em:
<http://www.projetospurgeon.com.br/wp-content/uploads/2012/07/ebook_eleicao_calvino.pdf>
[16]
Institutas, 3.2.38.
[17]
Institutas, 3.2.43.
[18]
Introdução a João Calvino, The Bondage and Liberation of the Will: A Defence of
the Orthodox Doctrine of Human Choice against Pighius, ed. A. N. S. Lane, trad.
G. I. Davies (Grand Rapids: Baker Books, 1996), p. 15.
[19]
Institutas, 2.14.5.
[20]
Institutas, 4.16.10.
[21]
Institutas, p. 1332, IV.xvi.9.
[22] Roland
H. Bainton, citado em Christian History, Vol. 5:4 (1986), p. 3.
[23] Philip
Schaff, History, vol. 8, p. 490.
[24] Philip
Schaff, History, vol. 8, p. 490-491.
[25] Will
Durant, Reformation, p. 474.
[26] The
Register of the Company of Pastors of Geneva in the Time of Calvin, trad. e ed.
Philip E. Hughes (Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 1966), p. 58;
[27] The
Register of the Company of Pastors of Geneva in the Time of Calvin, trad. e ed.
Philip E. Hughes (Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 1966), p. 71.
[28] Fisher,
Reformation, p. 222.
[29] John T.
McNeil, The History and Character of Calvinism, ed. Brochure (Londres: Oxford
University Press, 1966), p. 172.
[30]
Fisher, Reformation, p. 222.
[31]
VANCE, Laurence M. O outro lado do calvinismo.
[32] G. R.
Potter e M. Greengrass, John Calvin (Nova York: St. Martin’s Press, 1983), p.
46.
[33] John T.
McNeil, The History and Character of Calvinism, ed. Brochure (Londres: Oxford
University Press, 1966), p. 172
[34] Philip
Schaff, History, vol. 8, p. 504.
[35]
VANCE, Laurence M. O outro lado do calvinismo.
[36] ZWEIG,
Stefan, The Right to Heresy (Londres: Cassell and Company, 1936), p. 107.
[37]
Institutas, 2.14.5.
[38] Carta
de Calvino a Farel, 13 de fevereiro de 1546, em João Calvino, Letters of John
Calvin (Edinburgo: The Banner of Truth Trust, 1980), p. 82.
[39]
Carta de Calvino a Farel, 20 de agosto de 1553, em Calvino, Letters, p. 158.
[40]
Calvino, citado em Philip Schaff, History, vol. 8, p. 765.
[41]
Carta de Calvino a Farel, 20 de agosto de 1553, em Calvino, Letters, p. 159.
[42]
Carta de Calvino ao marquês de Poet, citado em Voltaire, The Works of Voltaire
(Nova York: E. R. DuMont, 1901), vol. 4, p. 89. Robert Robinson faz referência a isto, Ecclesiastical Researches
(Gallatin: Church History Research & Archives, 1984), p. 348, e Benedict,
History, vol. 1, p. 186.
[43] Defense
of the Orthodox Trinity Against the Errors of Michael Servetus, citado em Philip
Schaff, History, vol. 8, p. 791.
[44] John
Marshall, John Locke, Toleration and Early Enlightenment Culture (Cambridge
Studies in Early Modern British History), Cambridge University Press, p. 325,
2006, ISBN 0-521-65114-X.
[45]
Cunningham, Reformers, pp. 316-317.
[46] Schaff,
History, vol. 8, p. 769.
[47]
VANCE, Laurence M. O outro lado do calvinismo.
[48] Philip
Limborch, citado em Works of Arminius, vol. 1, p. liii.
[49] Homer
Hoeksema, Voice of Our Fathers, p. 9.
[50] Arthur
C. Custance, The Sovereignty of Grace (Phillipsburg: Presbyterian and Reformed
Publishing Co., 1979), p. 195.
[51] Samuel
Miller, Ensaio Introdutório a Thomas Scott, The Articles of the Synod of Dort
(Harrisonburg: Sprinkle Publications, 1993), p. 17.
[52] Hugo
Grotius, citado em George L. Curtiss, Arminianism in History (Cincinnati:
Cranston & Curts, 1894), p. 50.
[53] William
Jones, The History of the Christian Church, 5a ed. (Gallatin: Church History
Research and Archives, 1983), vol. 2, p. 238.
[54]
Oskar Pfister, citado em Christian History, Vol. 5:4 (1986), p. 3.
Extraído
do livro “Calvinismo X Arminianismo: quem está com a razão?”