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O LIVRE-ARBÍTRIO E OS PAIS DA IGREJA


 NORMAN GEISLER

“Porquanto Deus pôs em nosso poder o bem e o mal, deu-nos o livre-arbítrio da escolha, e quando não queremos não nos força; quando, porém, queremos, nos abraça” (JOÃO CRISÓSTOMO)

Dissemos no início do livro que o livre-arbítrio era crido por unanimidade pelos Pais da Igreja até Agostinho, que, a princípio, também cria nele, até a sua controvérsia com os donatistas, que o fez mudar de opinião e crer que Deus força alguém à conversão. Ainda assim, a posição de Agostinho não predominou nos séculos que se seguiram e o consenso unânime dos Pais permaneceu sendo a favor do livre-arbítrio, o que pode ser visto em seus livros e nos concílios da Igreja. Começaremos com as declarações do próprio Agostinho, antes de sua mudança[1]:

• Agostinho “jovem” (354-430)
“Deus indubitavelmente deseja que todos sejam salvos e cheguem ao pleno conhecimento da verdade; mas não lhes tirando o livre-arbítrio, pelo bom ou o mau uso do qual é que poderão ser justamente julgados”[2]

• Teodoreto (393-466)
“Aqueles cuja intenção Deus previu, Ele predestinou desde o princípio. Aqueles que predestinou, Ele chamou e justificou pelo batismo. Os que foram justificados, Ele glorificou, chamando-os filhos (…) Que ninguém diga que a presciência de Deus foi a causa unilateral dessas coisas. Não foi sua presciência que justificou as pessoas, mas Deus sabia o que aconteceria, porque Ele é Deus”[3]

• Eusébio de Cesareia (265-339)
“O conhecimento prévio dos eventos não é a causa de que tenham ocorrido. As coisas não ocorrem [somente] porque Deus sabe. Quando as coisas estão para ocorrer, Deus o sabe”[4]

• Atanásio de Alexandria (295-373)
“Pois, naturalmente, uma vez que a Palavra de Deus está acima de todos, quando Ele ofereceu Seu próprio templo e instrumento corpóreo como um substituto para a vida de todos, Ele cumpriu em morte todo o que era exigido”[5]
“Foi tarefa própria ao Verbo restaurar o corruptível para a incorrupção e colocar acima de tudo a glória de Deus. Por ser precisamente Verbo de Deus, superior a toda criatura, somente Ele pode criar novamente todas as coisas e assumir a representação de todos os homens perante o Pai”[6]
“Todos os homens estavam sujeitos à corrupção da morte. Substituindo a todos nós, o Verbo tomou um corpo semelhante ao nosso, entregando-o à morte e oferecendo ao Pai […] Dessa maneira, morrendo todos nEle, pode ser abolida a lei universal da mortalidade humana. A exigência da morte foi satisfeita no corpo do Senhor e, doravante, deixa de atingir os homens feitos semelhantes a Cristo. Aos homens que se haviam entregue à corrupção foi restituída a incorrupção e, mediante a apropriação do corpo de Cristo e de sua ressurreição, os homens foram redivivos da morte”[7]
“Portanto, desejando ajudar os homens, ele o Verbo habitou com os homens tomando forma de homem, tomando para si mesmo um corpo semelhante ao dos outros homens. Através das coisas sensoriais, isto é, mediante as ações de seu corpo, ele os ensinou que os que estavam privados de reconhecê-lo, mediante sua orientação e providência universais, podem por meio das ações de seu corpo reconhecer a Palavra de Deus encarnada e através dEle vir ao conhecimento do Pai”[8]

• Hilário de Poitiers (300-368)
“Porque, conforme o Evangelho, muitos são os chamados e poucos os escolhidos […] A eleição, portanto, não é questão de juízo acidental. É uma distinção feita por intermédio de uma seleção baseada no mérito. Feliz, então, aquele que elege a Deus: bendito em razão dele ser digno da eleição”[9]

• João Crisóstomo (347-407)
“Porquanto Deus pôs em nosso poder o bem e o mal, deu-nos o livre-arbítrio da escolha, e quando não queremos não nos força; quando, porém, queremos, nos abraça”[10]
“Não raro, aquele que é mau, se for desejado, muda-se em bom; e aquele que é bom, por inércia, cai e se torna mau, porquanto o Senhor nos fez com uma natureza dotada do livre-arbítrio. Nem impõe ele necessidade. Pelo contrário, providos os remédios apropriados, tudo deixa ficar ao arbítrio do enfermo”[11]
“Assim como nada jamais podemos fazer retamente, a não ser se ajudados pela graça de Deus, assim também, a menos que tenhamos de acrescentar o que é nosso, não poderemos alcançar o favor supremo”[12]
“Tudo está sob o poder de Deus, mas de um modo que nosso livre-arbítrio não é perdido […] Ele depende, entretanto, de nós e dele. Devemos primeiro escolher o bem, e, então, ele acrescenta o que lhe pertence. Ele não precede nosso querer, aquilo que nosso livre-arbítrio não suporta. Mas quando nós escolhemos, então ele nos proporciona muita ajuda. […] Cabe a nós escolher de antemão e querer, mas cabe a Deus aperfeiçoar e concretizar”[13]
“Deus, tendo colocado o bem e o mal em nosso poder, nos deu plena liberdade de escolha; ele não retém o indeciso, mas abraça o que é disposto”[14]
“Disse alguém: ‘Então é suficiente crer no Filho para se ganhar a vida eterna?’ De maneira nenhuma. Escuta esta declaração do próprio Cristo, dizendo: ‘Nem todo aquele que me diz: ‘Senhor, Senhor’ entrará no reino dos céus'; e a blasfêmia contra o Espírito é suficiente para lançar um homem no inferno”[15]

• Ambrósio de Milão (340-397)
“Ele quer ter para si todos os homens que criou. Possas tu, ó homem, não fugir para longe de Cristo, não te esconder dele! E, todavia, ele procura ainda aqueles que se escondem”[16]

• Jerônimo (347-420)
“Nosso é o começar, de Deus, porém, o terminar; nosso, oferecer o que podemos, dele prover o que não podemos”[17]
“E em vão que você tem uma idéia falsa a meu respeito e tenta convencer o ignorante de que eu condeno o livre-arbítrio. Deixe aquele que o condena ser ele próprio condenado. Fomos criados, capacitados com o livre-arbítrio; ainda não é isto que nos distingue dos bárbaros. Pois o livre-arbítrio humano, como eu disse, depende da ajuda de Deus e necessita de sua ajuda momento a momento, algo que você e os seus não escolhem admitir. Sua posição é a de que, uma vez que o ser humano tem livre-arbítrio, ele não mais necessita da ajuda de Deus. E verdade que a liberdade da vontade traz consigo a liberdade da decisão. Ainda assim o ser humano não age imediatamente sobre o seu livre-arbítrio, mas requer a ajuda de Deus que, em si mesmo, não precisa de ajuda”[18]
“Quando nós estamos preocupados com a graça e a misericórdia, o livre-arbítrio é em parte anulado; em parte, eu digo, porque tanto depende dele, que queremos e desejamos, e damos consentimento ao curso que escolhemos. Mas depende de Deus se temos o poder em sua força e com sua ajuda para fazer o que desejamos, e para nosso trabalho e esforço darem resultado”[19]
“Deus nos criou com livre-arbítrio e não somos forçados pela necessidade nem à virtude nem ao vício. Do contrário, se não estamos obrigados pela necessidade, não há coroa. Como nas boas obras, é Deus quem os traz à perfeição, já que não é de quem quer, nem do que corre, mas de Deus que piedosamente nos ajuda a ser capazes de atingir a meta”[20]

• Orígenes de Alexandria (185-253)
“O livre-arbítrio é a faculdade da razão para discernir o bem ou o mal, a faculdade da vontade para escolher um ou outro desses dois”[21]
“Ora, deve ser conhecido que os santos apóstolos, na pregação da fé de Cristo, pronunciaram-se com a maior clareza sobre certos pontos que eles criam ser necessários para todo mundo. […] Isso também é claramente definido no ensino da Igreja de que cada alma racional é dotada de livre-arbítrio e volição”[22]
“Há, de fato, inúmeras passagens nas Escrituras que estabelecem com extrema clareza a existência da liberdade da vontade”[23]

• Metódio de Olimpos (†311)
“Ora, aqueles que decidem que o ser humano não possui livre-arbítrio, e afirmam que ele é governado pelas necessidades inevitáveis do destino […] são culpados de impiedade para com o próprio Deus, fazendo-o ser a causa e o autor dos males humanos”[24]
“Eu digo que o ser humano foi feito com livre-arbítrio, não como se já houvesse algum mal existente, que ele tinha o poder de escolher se quisesse […], mas que o poder de obedecer e desobedecer a Deus é a única causa”[25]

• Arquelau de Atenas (Séc.V)
“Todas as criaturas que Deus fez, ele fez muito boas, e deu a cada indivíduo o senso de livre-arbítrio, de acordo com o padrão que ele também instituiu na lei de julgamento. Pecar é característica nossa, e nosso pecado não é dom de Deus, já que nossa vontade é constituída de modo a escolher tanto pecar quanto não pecar”[26]

• Arnóbio de Sicca (†330)
“Aquele que convida a todos não liberta igualmente a todos? Ou não empurra ele de volta ou repele qualquer um para longe da amabilidade do Supremo que dá a todos igualmente o poder de vir a ele? – A todos, ele diz, a fonte da vida está aberta, e ninguém é impedido ou retido de beber”[27]
“Mais ainda, meu oponente diz que, se Deus é poderoso, misericordioso, desejando salvar-nos, que mude as nossas disposições e nos force a confiar em suas promessas. Isso, então, é violência, não é amabilidade nem generosidade do Deus supremo, mas uma luta vã e pueril na busca da obtenção do domínio. Pois o que seria tão injusto como forçar homens que são relutantes e indignos, reverter suas inclinações; imprimir forçadamente em suas mentes o que eles não estão desejando receber, e têm horror de…”[28]

• Cirilo de Jerusalém (313-386)
“Saiba também que você tem uma alma autogovernada, a mais nobre obra de Deus, feita à imagem do Criador, imortal por causa de Deus que lhe dá imortalidade, um ser vivente racional, imperecível, por causa dele que concedeu esses dons: tendo livre poder para fazer o que deseja”[29]
“Não há um tipo de alma pecando por natureza e outro de alma praticando justiça por natureza; ambas agem por escolha, a substância da alma sendo de uma espécie somente e igualmente em tudo”[30]
“Sois feitos partícipes de uma videira santa: se permaneces na videira, crescerás como um cacho frutífero; porém, se não permaneces, serás consumido pelo fogo. Assim, pois, produzamos fruto dignamente. Que não nos suceda o mesmo que aquela videira infrutífera; não ocorra que, ao vir Jesus, a maldiga por sua esterilidade. Que todos possam, ao contrário, pronunciar estas palavras: ‘Eu, porém, como oliveira verde na casa de Deus, confio no amor de Deus para todo o sempre’. Não se trata de uma oliveira sensível, mas inteligível, portadora da luz. O que é próprio d’Ele é plantar e regar; a ti, porém, cabe frutificar. Por isso, não desprezes a graça de Deus: guardai-a piedosamente quando a receberdes”[31]
“A alma é autogovernada: e embora o Demônio possa sugerir, ele não tem o poder de obrigar a vontade. Ele lhe pinta o pensamento da fornicação: mas você pode rejeitá-lo, se quiser. Pois se você fosse fornicador por necessidade, por que razão Deus preparou o inferno? Se você fosse praticante da justiça por natureza, e não pela vontade, por que preparou Deus coroas de glória inefável?. A ovelha é afável, mas ela nunca foi coroada por sua afabilidade; visto que sua qualidade de ser afável lhe pertence por natureza, não por escolha”[32]

• Basílio Magno (329-379)
“Eles, então, que foram selados pelo Espírito até o dia da redenção e preservaram puros e intactos os primeiros frutos que receberam do Espírito, ouvirão as palavras: ‘Muito bem, servos bons! Como fostes fiéis no mínimo, tomai o governo de muitas coisas’. Da mesma forma, os que ofenderam o Espírito Santo pela maldade de seus caminhos, ou não forjaram para si o que Ele lhes deu, serão privados do que receberam e sua graça será dada a outros; ou, conforme um dos evangelistas, serão totalmente cortados em pedaços, cujo significado é ser separado do Espírito”[33]

• Gregório de Nissa (330-395)
“Sendo à imagem e semelhança […] do Poder que governa todas as coisas, o ser humano manteve também na questão do livre-arbítrio esta semelhança a ele cuja vontade domina tudo”[34]

• Iriney de Lyon (130-202)
“A expressão: ‘Quantas vezes eu quis reunir os seus filhos […] mas vocês não quiseram’ ilustra bem a antiga lei da liberdade do homem, porque Deus o fez livre desde o início, com vontade e alma para consentir nos desejos de Deus sem ser coagido por ele. Deus não faz violência, e o bom conselho o assiste sempre, por isso dá o bom conselho a todos, mas também dá ao homem o poder de escolha, como o tinha dado aos anjos, que são seres racionais, para que os que obedecem recebam justamente o bem, dado por Deus e guardado para eles. […] Se não dependesse de nós o fazer e o não fazer, por qual motivo o apóstolo, e bem antes dele o Senhor, nos aconselhariam a fazer coisas e a nos abster de outras? Sendo, porém, o homem livre na sua vontade, desde o princípio, e livre é Deus, à semelhança do qual foi feito, foi-lhe dado, desde sempre, o conselho de se ater ao bem, o que se realiza pela obediência a Deus”[35]

“O Senhor, pois, nos remiu através de seu sangue, dando sua vida em favor da nossa vida, sua carne por nossa carne. Derramou o Espírito do Pai para que fosse possível a comunhão de Deus e do homem. Trouxe Deus aos homens mediante o Espírito, e levou os homens a Deus mediante sua encarnação”[36]

“Por isso, dizia aquele presbítero: não devemos nos sentir orgulhosos nem reprovar os antigos; ao contrário, devemos temer; não ocorra que, depois de conhecermos a Cristo, façamos aquilo que não agrada a Deus e, consequentemente, já não nos sejam perdoados os nossos pecados, nos excluindo de seu Reino. Paulo disse a este propósito: ‘Se não perdoou os ramos naturais, tampouco te perdoará, pois sois oliveira silvestre enxertada nos ramos da oliveira [boa] e recebes [vida] da sua seiva'”[37]

• Atenágoras de Atenas (133-190)
“Justamente como homens que possuem liberdade de escolha assim como virtude e defeito (porque você não honraria tanto o bom quanto puniria o mau, a menos que o defeito e a virtude estivessem em seu próprio poder, e alguns são diligentes nos assuntos confiados a eles, e outros são infiéis), assim são os anjos”[38]

• Teófilo de Antioquia (†186)
“Deus fez o homem livre, e esse poder sobre si próprio […] Deus lhe concede como um dom por filantropia e compaixão, quando o homem lhe obedece. Pois como o homem, desobedecendo, atraiu morte sobre si próprio, assim, obedecendo ã vontade de Deus, aquele que deseja é capaz de obter para si mesmo a vida eterna”[39]

• Taciano, o Sírio (120-180)
“Viva para Deus e, apreendendo-o, coloque de lado sua velha natureza. Não fomos criados para morrer, mas morremos por nossa própria falha. Nosso livre-arbítrio nos destruiu, nós que fomos livres nos tornamos escravos; fomos vendidos pelo pecado. Nada de mal foi criado por Deus; nós próprios manifestamos impiedade; mas nós, que a temos manifestado, somos capazes de rejeitá-la novamente”[40]

• Bardesano da Síria (154-222)
“Como é que Deus não nos fez de modo que não pecássemos e não incorrêssemos na condenação? Se o ser humano fosse feito assim, não teria pertencido a si mesmo, mas seria instrumento daquele que o moveu. […] E como, nesse caso, diferiria de uma harpa, sobre a qual outro toca; ou de um navio, que outra pessoa dirige: onde o louvor e a culpa residem na mão do músico ou do piloto, […] eles sendo somente instrumentos feitos para uso daquele em quem está a habilidade? Mas Deus, em sua benignidade, escolheu fazer assim o ser humano; pela liberdade ele o exaltou acima de muitas de suas criaturas”[41]

• Clemente de Alexandria (150-215)
“Mas nós, que temos ouvido pelas Escrituras que a escolha auto-determinadora e a recusa foram dadas pelo Senhor ao ser humano, descansamos no critério infalível da fé, manifestando um espírito desejoso, visto que escolhemos a vida e cremos em Deus através de sua voz”[42]

“Mas nada existe sem a vontade do Senhor do universo. Resta dizer que essas coisas acontecem sem o impedimento do Senhor. Não devemos, portanto, pensar que ele ativamente produz aflições (longe esteja de nós pensar uma coisa dessas!); mas devemos ser persuadidos de que ele não impede os que as causam, mas anula para o bem os crimes dos seus inimigos”[43]

• Clemente de Roma (35-97)
“Agora, pois, como seja certo que tudo é por Ele visto e ouvido, temamos e abandonemos os execráveis desejos de más obras, a fim de sermos protegidos por sua misericórdia nos juízos vindouros. Porque ‘para onde algum de nós poderá fugir de sua poderosa mão?’ Que mundo acolherá os desertores de Deus?”[44]

• Tertuliano (160-220)
“Eu acho, então, que o ser humano foi feito livre por Deus, senhor de sua própria vontade e poder, indicando a presença da imagem de Deus e a semelhança com ele por nada melhor do que por esta constituição de sua natureza […] Você verá que, quando ele coloca diante do ser humano o bem e o
mal, a vida e a morte, que o curso total da disciplina está disposto em preceitos pelos quais Deus chama o ser humano do pecado, ameaça e exorta-o; e isso em nenhuma outra base pela qual o ser humano é livre, com vontade ou para a obediência ou para a resistência […] Portanto, tanto a bondade quanto o propósito de Deus são descobertos no dom da liberdade em sua vontade dado ao ser humano”[45]

• Novaciano de Roma (†258)
“Ele também colocou o ser humano no topo do mundo, e também o fez à imagem de Deus, e lhe comunicou mente, razão e perspicácia, para que pudesse imitar a Deus; e, embora os primeiros elementos do seu corpo fossem terrenos, a substância foi inspirada por um sopro divino e celestial. E, quando ele lhe deu todas as coisas para o seu serviço, quis que apenas ele fosse livre. E, para que novamente uma ilimitada liberdade não caísse em perigo, estabeleceu uma ordem, na qual ao ser humano foi ensinado que não havia qualquer mal no fruto da árvore; mas ele foi advertido previamente de que o mal surgiria se porventura ele exercesse o seu livre-arbítrio no desprezo à lei que lhe foi dada”[46]

• Justino de Roma (100-165)
“Deus, no desejo de que homens e anjos seguissem sua vontade, resolveu criá-los livres para praticar a retidão. Se a Palavra de Deus prediz que alguns anjos e homens certamente serão punidos, isso é porque ela sabia de antemão que eles seriam imutavelmente ímpios, mas não porque Deus os criou assim. De forma que quem quiser, arrependendo-se, pode obter misericórdia”[47]
“…Mas agora ele [Deus] nos persuade e nos conduz à fé para que sigamos o que lhe é grato, por livre escolha, através das potências racionais, com que ele mesmo nos presenteou”[48]
“Do que dissemos anteriormente, ninguém deve tirar a conclusão de que afirmamos que tudo o que acontece, acontece por necessidade do destino, pelo fato de que dizemos que os acontecimentos foram conhecidos de antemão. Por isso, resolveremos também essa dificuldade. Nós aprendemos dos profetas e afirmamos que esta é a verdade: os castigos e tormentos, assim como as boas recompensas, são dadas a cada um conforme as suas obras. Se não fosse assim, mas tudo acontecesse por destino, não haveria absolutamente livre-arbítrio. Com efeito, se já está determinado que um seja bom e outro mau, nem aquele merece elogio, nem este vitupério. Se o gênero humano não tem poder de fugir, por livre determinação, do que é vergonhoso e escolher o belo, ele não é irresponsável de nenhuma ação que faça. Mas que o homem é virtuoso e peca por livre escolha, podemos demonstrar pelo seguinte argumento: vemos que o mesmo sujeito passa de um contrário a outro. Ora, se estivesse determinado ser mau ou bom, não seria capaz de coisas contrárias, nem mudaria com tanta frequência. Na realidade, nem se poderia dizer que uns são bons e outros maus, desde o momento que afirmamos que o destino é a causa de bons e maus, e que realiza coisas contrárias a si mesmo, ou que se deveria tomar como verdade o que já anteriormente insinuamos, isto é, que a virtude e maldade são puras palavras, e que só por opinião se tem algo como bom ou mau. Isso, como demonstra a verdadeira razão, é o cúmulo da impiedade e da iniquidade. Afirmamos ser destino ineludível que aqueles que escolheram o bem terão digna recompensa e os que escolheram o contrário, terão igualmente digno castigo. Com efeito, Deus não fez o homem como as outras criaturas. Por exemplo: árvores ou quadrúpedes, que nada podem fazer por livre determinação. Nesse caso, não seria digno de recompensa e elogio, pois não teria escolhido o bem por si mesmo, mas nascido já bom; nem, por ter sido mau, seria castigado justamente, pois não o seria livremente, mas por não ter podido ser algo diferente do que foi”[49]

• Didaquê (Séc.I)
“Vigiai sobre a vossa vida; não deixai que vossas lâmpadas se apaguem, nem afrouxai vossos cintos. Ao contrário, estai preparados porque não sabeis a hora em que virá o Senhor. Reuni-vos frequentemente, procurando o que convém a vossas almas; porque de nada vos servirá todo o tempo a vossa fé se não fores perfeitos no último momento”[50]
“Toda criatura humana passará pela prova de fogo e muitos, escandalizados, perecerão. No entanto, aqueles que permanecerem firmes na fé serão salvos por aquele que os outros amaldiçoarão”[51]

• Sínodo de Arles – Proposições Condenadas (473)
“O trabalho da obediência humana não precisa cooperar com a graça. Cristo não morreu pela salvação de todos. A presciência de Deus violentamente compele o homem à perdição: os que perecem, perecem pela vontade divina”
“Concílio acrescentava a seguinte declaração: Concebemos a graça de Deus de tal maneira que o esforço do homem devam cooperar com ela, pois a liberdade de escolha do homem [libertatum voluntatis], embora atenuada e enfraquecida, não está extinta. Portanto, ainda esta em perigo aquele que se salvou e ainda pode ser salvo aquele que se perdeu”

• Sínodo de Orange (529)
“Através do pecado de Adão, nossa liberdade foi depravada e debilitada a tal ponto que, sem a graça preveniente misericordiosa de Deus, ninguém poderia amar a Deus como convém, nem crer nele, nem fazer o que é reto (Fp.1:6,29; Ef.2:8; 1Co. 4:7; 7:25; Tg.1:17; Jo 3:27)”
“Não só não aceitamos que certos homens têm sido predestinados ao mal pela divina disposição, mas lançamos anátemas horrorizados contra quem pensar coisa tão perversa”

• Concílio de Kiersy (853)
“Deus conheceu pela sua presciência os que devem se perder, mas ele não os predestinou a se perderem. Porque Deus é justo, ele predestinou uma pena eterna para a sua falta”[52]
• Concílio de Valença (855)
“Com o concílio de Orange nós lançamos o anátema a todos os que disserem que alguns homens são predestinados para o mal pelo poder de Deus”[53]

• Conclusão
Como bem definiu Geisler, “se não fosse por um lapso na história da pré-Reforma, não teria havido ‘calvinistas’ extremados[54] notáveis nos primeiros 1.500 anos da Igreja. Essa exceção é encontrada nos últimos escritos de Agostinho”[55].

[1] Embora o tema principal deste apêndice seja o livre-arbítrio, eventualmente uma ou outra citação pode ser de alguma outra doutrina contrária ao calvinismo, como a expiação ilimitada, a perda da salvação ou a eleição condicional.
[2] On the Spirit and the Letter, 61.
[3] Comentário de Romanos 8:30.
[4] “The Faith of the Early Fathers”, Volume I. William A. Jurgens. Liturgical Press, Collegeville Minnesota, 1970; pág. 296.
[5] On the Incarnation of the Word, 2:9.
[6] De Incarnatione, c. 318, VII.
[7] De Incarnatione, c. 318, VIII.
[8] De Incarnatione, c. 318, XIV.
[9] Do Salmo 64[65],5.
[10] Homílias da Traição de Judas, 1, 3.
[11] Sobre o Gênesis, hom. XIX, 1.
[12] Sobre São Mateus, hom. LXXXII, 4.
[13] Homilia sobre Hebreus.
[14] Homilias sobre Gênesis, 19.1.
[15] Homilia sobre o Evangelho de João, 31:1.
[16] Enarrat in Ps. 39, no. 20, P. L., XIV, 1117.
[17] Contra os Pelagianos, 3:1.
[18] Jerônimo, Cartas, citado em “Eleitos, mas Livres”, Norman Geisler, p. 175.
[19] Contra os Pelagianos, Livro III.
[20] Contra Joviniano 2,3.
[21] Orígenes, citado por João Calvino, Institutas, 2.2.4.
[22] De Principiis, pref.
[23] De Principiis, 3.1.
[24] O banquete das dez virgens, 16.
[25] Sobre o livre-arbítrio.
[26] Discussão com Maní.
[27] Contra os pagãos.
[28] Contra os pagãos.
[29] Lecture, IV.
[30] Lecture, IV.
[31] Catequese 1,4.
[32] Lecture, IV.
[33] Do Espírito Santo, 16,40.
[34] Sobre a virgindade, cap. XII.
[35] Contra as heresias, IV, 37.1,4.
[36] A Redenção do poder satânico, Adv. Haer V.I.2.
[37] Contra as Heresias 4,27,2,
[38] Embassy for Christians, XXIV.
[39] Para Autolycus, XXVII.
[40] Address, XI.
[41] Fragmentos.
[42] Stromata, 2.4.
[43] Stromata, 4.12.
[44] 1ª Carta aos Coríntios 28,1-2.
[45] Contra Marcião, 2.5.
[46] Sobre a Trindade, cap. 1.
[47] Dialogue, CXLI.
[48] 1ª Apologia – Capítulo 11.4.
[49] 1ª Apologia – Capítulo 43.
[50] XVI,1-2.
[51] XVI, 5.
[52] 316.I.
[53] Cânon III.
[54] Vale lembrar que o termo “calvinismo extremado” em Geisler significa nada a menos que o próprio calvinismo, pois o próprio Geisler rejeita 4 dos 5 pontos da TULIP calvinista – é um arminiano na prática.
[55] GEISLER, Norman. Eleitos, mas Livres: uma perspectiva equilibrada entre a eleição divina e o livre-arbítrio. Editora Vida: 2001, p. 189.